Mudança para Melhor

Publicado em: 17 de março de 2017.

Câmara aprova projeto que cria cadastro nacional de crianças e famílias e vai facilitar adoção no Brasil.

 

Ronaldo Soares

 

 

Na semana passada, a câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que representa um avanço em relação aos direitos da infância no Brasil. O texto, de autoria do deputado João Matos (PMDB-SC), cria mecanismos que agilizam o processo de adoção de crianças e adolescentes. O principal é a organização de um cadastro nacional com os dados de crianças disponíveis para adoção e de pessoas interessadas em recebê-las. É difícil acreditar, mas, em plena era da informática, a esmagadora maioria de cadastros que existem no país restringem-se a uma comarca. No máximo, existem cadastros estaduais. A lei também unifica nacionalmente as exigências para os candidatos a pais adotantes, pondo fim a uma babel burocrática. O projeto aperfeiçoa e organiza normas já existentes sobre esse tema, que estavam espalhadas em dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Código Civil. Elas passam a ficar agrupadas a Lei Nacional da Adoção, que fará parte do ECA. O projeto ainda passará pelo Senado antes de ser enviado a sanção presidencial.

Segundo levantamento da Associação dos Magistrado Brasileiros (AMB), existem cerca de 80000 crianças abrigadas no Brasil. Desse total, apenas 10% estão disponíveis para adoção. Os outros 90% vivem no limbo e correm o risco de chegar à maioridade sem Ter conseguido encontrar um lar. O texto votado pela Câmara tem o grande mérito de limitar o tempo de permanência em abrigo, uma situação nociva para o desenvolvimento de qualquer criança e em total desacordo com um de seus direitos fundamentais – o de ser criada por uma família, seja a biológica, seja uma substituta. Esse prazo passará a ser de dois, tempo suficiente para que ela seja acolhida por algum parente ou encaminhada para adoção, num processo acompanhado pelo Juizado da Infância. Se isso não ocorrer, o juiz terá de explicar por que a criança continua obrigada.

“Trata-se de um avanço fenomenal. Hoje, temos de justificar a saída da criança do abrigo. Agora teremos de justificar sua permanência na unidade”, diz o juiz Francisco Oliveira neto, coordenador da campanha Mude um Destino, na AMB. Outra mudança importante é que a decretação da perda do poder dos pais biológicos sobre a criança terá de ser feita em no máximo 120 dias, a partir do momento em que, constatada a impossibilidade de reintegrá-la à sua família original, se abre o processo na Justiça. Atualmente esse prazo não existe, o que na prática impede que boa parte das crianças encontre uma família. É uma realidade cruel: à medida que crescem, vai ficando mais difícil encontrar quem as queira. Não por acaso. A maioria da população dos abrigos tem mais de 7 anos de idade, e a espera dos candidatos a pais adotantes é de que quase 4 anos.

A lei também aumenta as restrições à adoção por estrangeiros. No caso de crianças aptas a ser adotadas por pessoas de outros países, a lei dará prioridade a brasileiros residentes no exterior. É uma medida que divide opiniões, porque casais estrangeiros costumam aceitar crianças que normalmente estão fora do perfil preferido pelos brasileiros, como as pretas e pardas – que constituem a maioria nos abrigos. Mas a restrição tem o apoio da Convenção de Haia, que regula os mecanismos de adoção internacional. O holandês Hans van Loon, secretário-geral da entidade, disse a VEJA que realmente a prioridade deve ser dada a famílias de mesma nacionalidade que a criança. Ele teme que a onda de adoções internacionais por estrelas da música e do cinema estimule uma prática que só deve ser usada em último caso, quando se esgotarem todas as possibilidades de reintegrar a criança a sua família ou entregá-la para adoção por pessoas do mesmo país. O casal Brad Pitt e Angelina Jolie, por exemplo, adotou um filho no Camboja, outro na Etiópia e um terceiro no Vietnã. Já a cantora Madonna optou por uma criança no Malauí, num episódio polêmico. “O problema, em casos assim, é que as celebridades acabam passando também por cima das leis”, diz Van Loon.

Embora constitua um avanço, o projeto não terá o efeito pensado pelos legisladores se a rede de abrigos e juizados de infância não for dotada de estrutura material e de pessoal adequada. Um exemplo das carências nessa área é a 1ª Vara Regional da Infância, da Juventude e do Idoso, no Rio de Janeiro, que abrange uma área com 1,5 milhão de pessoas, espalhadas por 33 bairro. A juíza titular do órgão, Mônica Labuto, só dispõe de dois carros, um psicólogo, quatro assistentes sociais e dois oficiais de Justiça para atender esse contingente. “Já fiquei uma semana sem conseguir realizar audiências porque um oficial de Justiça estava de férias e o outro ficou doente”, diz. “É preciso que a lei venha acompanhada de estrutura para os abrigos e os juizados. Caso contrário, será mais uma que não vai pegar no Brasil”, avalia.