Publicado em: 23 de novembro de 2008.
Nem bem atravesso a porta que leva à sala, escuto gritinhos de um bebê que tenta se comunicar. No mesmo instante, algo muda em Flávia.
O trânsito caótico da Avenida Santo Amaro, na Zona Sula de São Paulo, passa a três quadras da casa de Flávia Miranda de Oliveria, 33 anos, professora de educação infantil e psicóloga, e Ricardo Peev, 38 anos, jornalista. Os sons das freadas e das buzinas não chegam até lá. Por sorte do casal, há uma calmaria rara nesse cantinho da capital paulista. Flávia me recebe numa tarde de quinta-feira de sol e calor intensos. Nem bem atravesso a porta que leva à sala, escuto gritinhos de um bebê que tenta se comunicar. No mesmo instante, algo muda em Flávia. O brilho de seu olhar se torna mais forte, e ela não consegue esconder o quanto está radiante por ter se tornado mãe. Essa felicidade começou em fevereiro, quando Ricardo contou, por telefone, que Davi, hoje com 7 meses, nasceria dentro de dois meses em São Luís, Maranhão. Assim, sem rodeios, ela começa a me contar a história de amor e de adoção entre ela e o filho. “Cada vez que eu reconto, me aproprio mais dela”, diz, com olhos marejados. Faz uma pausa, toma um gole de café, e volta a sorrir.
O casal tentou engravidar por cinco anos. “Parece que um mês vira um ano. Um belo dia eu disse: chega!” Ela conta que, inconscientemente, se aproximou de casais que tinham adotado. Em uma festa, o avô da aniversariante, também adotiva, disse a Flávia: “Só falta você.” Na hora, ela diz ter ficado com raiva. Mas sentiu também que ele colocou nela a sementinha da adoção. Dois anos mais tarde, Flávia entendeu o que leva casais aterem um filho por outro caminho. “Não queria ter uma barriga. Queria um filho, queria ser mãe. A gravidez pode ser um caminho. Mas não existe só esse.” Não levou muito tempo até entrarem na fila para adoção.
Contar para os familiares foi o segundo passo. Flávia deu a notícia aos pais dela durante um jantar, dizendo que ela e o marido estavam pensando em adotar – quando na verdade já tinham se decidido. Ela faz uma pausa para segurar com os dedos as lágrimas que insistem em sair. Levanta-se do sofá e imita os gestos do pai, como se estivesse revivendo tudo. “Ele me abraçou chorando. Dizia ‘filha querida, você está me dando um presente. Nunca te falaria isso, mas sempre pensei nisso para você, e não como prêmio de consolação.”Também falaram, com carinho, aos filhos que Ricardo teve no primeiro casamento, Mário e Marina. Mais que adorar, todos celebraram.
O quarto foi decorado em apenas dois meses, logo após o telefonema. Ovelhas zelam pelo sono do pequeno. Na gaveta da cômoda, os pais começaram a montar uma biblioteca infantil. Por lá está a coleção de carrinhos com os quais em poucos meses Davi vai adorar brincar. Enfeitam a parede dois quadros feitos por uma amiga artista plástica. Ali está a história de Moisés, que chegou aos braços da princesa, filha do faraó, em um cesto pelo rio. Para ela, é uma representação simbólica da chegada de Davi.
Hoje Flávia olha para o filho e não lembra das dificuldades que passou. Uma delas foi viajar, ao lado da mãe, para São Luís. Ricardo só poderia se afastar do trabalho por uma semana. Então, embarcaria assim que os papéis da guarda provisória fossem liberados. A mãe biológica do bebê, em um processo chamado adoção direta, abdicou dos direitos legais sobre o filho e escolheu um casal para entregá-lo. No caso, Flávia e Ricardo. Um casal de amigos fez o intermédio. “É como se estivesse cada vez mais perto de realizar um sonho”, diz. Davi parece saber que estamos falando dele. Flávia lhe manda um beijo e ele, num gesto de cumplicidade, gargalha.
Instalada em São Luís, Flávia decidiu, três dias antes do parto, programado para uma quarta-feira, passar as roupas do enxoval. Naquela madrugada, o advogado, que fez o intermédio entre as duas famílias, ligou avisando que a bolsa da mulher tinha rompido e que estavam indo para uma clínica, paga pelo casal. “Foi como se tivesse sentido as contrações também.”
Ela e a mãe permaneceram em uma ante-sala ao lado da sala de parto. Quando Davi nasceu, ela ouviu o primeiro choro do filho. Minutos depois, ainda enrolado na toalha, ele foi ao encontro do peito dela. Flávia tinha feito estimulação para ter leite. “A sensação de amamentá-lo foi indescritível”, diz. Daquele momento em diante os outros problemas deixaram de existir, tudo ficou menor. Agora ela tinha o Davi.
Ricardo viajou duas semanas depois. Ligava incessantemente e chorava ao telefone. Ele sofria ao pensar que o filho não o reconheceria. A volta para casa foi o momento com que Flávia sonhou desde que ouviu falar de Davi e o amou, antes mesmo de conhecê-lo. Fazemos uma pausa para o lanche da tarde do menino.Manhoso por conta da dor do nascimento de dente, ele rejeita a papa de frutas. A mãe aconchega-o no colo e a irritação passa. Da janela da sala, somos vigiados pelo cão de guarda, um mix de vira-lata com boxer. Ele é o protetor de Davi. Foi comprado um mês depois do nascimento do bebê. O nome foi escolhido a dedo –e não poderia caber melhor: Golias.
Quando Davi adormece, pergunto como eles pretendem contar ao menino sobre a adoção. Mesmo sorrindo, Flávia se emociona e caem as lágrimas novamente. Não é um choro de lamentação, é felicidade. Davi parece ter curado Flávia. Antes ela vivia a ausência, a impotência. Davi foi o sim. Ela quer contar a ele a história inteira, que não precisa ser de rejeição, e sim de aceitação, sem rótulos ou estigmas. “Ele não é adotivo, ele foi um dia adotado. Hoje ele é meu filho legítimo.”