Publicado em: 4 de outubro de 2008.
Era fim da tarde, uma tarde nublada e quente, como podia ser avistado pela janela.
Por Sávio Bittencourt (artigo publicado no Jornal O Estado-CE).
Sonhei ontem com você. Um sonho perturbador em sono profundo, do qual não se pode sair impunemente. Daqueles sonhos cuja lógica toma formas especiais, alucinadas e tortuosas, sem deixar de ser verossímil. Tendo eu me impressionado com o ocorrido, relato com a exatidão que a memória permite.
Era fim da tarde, uma tarde nublada e quente, como podia ser avistado pela janela. As coisas aconteciam lentamente, sem novidades, sem brilho. Era um quase-tédio, quebrado tão somente pelas obrigações repetitivas. Dentro de mim havia um sentimento burocrático, de carimbador de papéis.
Neste ambiente ocre, ocorreu um fato transformador. Você abriu a porta e entrou sorrindo. Bateu a porta sem cerimônia e me olhou profundamente. Vi-me em pé diante de você, parado olhando embevecido, numa distância tão curta que eu podia sentir seu hálito de hortelã. Ficamos assim parados pela eternidade de quinze segundos, quando o dorso de minha mão esquerda tocou seu rosto levemente, descendo assim até seu queixo, virando em seguida para que a palma o tocasse enquanto meus dedos escorriam por sua boca. Senti com esses dedos sua respiração, que eu supunha ofegante, mas me enganei: era soberanamente calma e profunda, dona de si.
Quando dei por mim minhas duas mãos acariciavam sue rosto, meus dedos entrelaçavam-se em seus cabelos. Você tinha as mãos pousadas no meu peito, mas elas não me refutavam. Apenas permaneciam ali, quentes, podendo eu sentir um leve movimento de dobradura dos seus dedos no meu peito, como um carinho involuntário.
Não havia ali ambiente de ressentimentos ou culpas. Era como se o mundo não existisse. Ele não existia. Havia só nós dois livres do peso das cangalhas emocionais, seres leves, no sentido mais obsceno da leveza. Senti um perfume forte, puxado de flores, revelador de um espírito contundente, viril, descido num corpo dócil e delicado. Fogo contido, água represada desejando escoar mundo abaixo. Seu perfume me envolveu enquanto revelou sua natureza.
Acossados pelos meus carinhos e pressentindo meu afeto, pujante e ardente, incontrolável, seus olhos se fecharam, condescendentes. Seus dedos agora arranhavam meu peito levemente, sem pudores. Um beijo era essencial. Um beijo da sobrevivência emocional, da redenção do carinho que irriga as vilas secas dos corações acomodados. Um beijo.
Os lábios se tocaram em um pequeno beijo comportado e afetuoso, um beijinho estalinho breve, seguido de vários beijinhos da mesma natureza, aumentando em tempo e voracidade e evoluindo para uma ofegante e ansiosa sofreguidão. Mordi seus lábios levemente e nos demos àquele beijo louco e despudorado como se lutássemos por nossas vidas. O perfume, seus lábios, suas mãos em minha nuca, seus olhos que abriam para me ver entregue e fechavam em seguida para que os outros sentidos pudessem ser exauridos, minhas mãos em torno da sua cintura se apropriando inadvertidamente do seu corpo. Um beijo escandaloso, carinhoso, beijo de desejo…
Acho que isso durou uns dois minutos, mas não tenho como saber se sonhei por horas ou por instantes. Sei que quando acabamos de nos beijar você sorriu, passou dois dedos pelo flanco do meu rosto do lado do olho esquerdo, descendo rapidamente até minha boca, que se preparava para uma palavra de amor, mas foi impedida pelo gesto delicado de sua mão que se postou sobre ela. Não havia palavra que pudesse ser mencionada, que não empobrecesse o vivido.
Você simplesmente sorriu, virou-se, abriu a porta e sumiu. Nas certezas dos sonhos, bons ou ruins, eu sabia que você havia partido. Definitivamente. Num súbito arrobo de gritar seu nome, me vi mudo. Acordei. Acordei agoniado e me pus em busca de um copo d’água, atordoado. Estava tudo normal em meu mundo. Menos minha blusa de dormir. Ela tinha um perfume novo, forte, puxado em flores, que eu não posso atinar como nela se entranhou.